30 outubro, 2011

setenta

Somos miúdos esfomeados de sono. Os chinelos a meio palmo da cama para nunca andar descalço, o pijama azul feio, o cabelo penteado para a direita e o dento partido a meio que um filho da puta qualquer me há-de querer emendar, e eu quero-o assim. Os pés de um morto, os pés a morrerem de frio. Pensar que foi há tanto tempo. Era ter um cão que não morresse antes de mim, uns pais que ficassem o tempo todo por perto, que nos dessem espaço para saudades e uma mulher ou duas. Era termos isso e não crescíamos. E nunca tinha dado com esta cara ao espelho de barba por fazer, estes olhos a quererem descanso, este quarto de merda que nada tem de meu. Tenho saudades tuas. Puta que pariu o tempo e caralhos me fodam se não me fizeste falta a vida toda. Só não sei se é melhor assim. Imagina: veres-me de pijama azul feio, o dente partido a meio. Desmanchar-te-ias a rir mesmo na minha cara. Tenho uma estranha certeza absoluta de que ainda hoje teria as bochechas vermelhas, os braços arrumados para dentro dos bolsos das calças e os ombros encolhidos numa vergonha descomunal.

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