20 novembro, 2011

setenta e cinco

- Faça-me um favor, segure-me o copo enquanto eu peço outro para estoirarmos num piscar de olhos.

- Deixe. Continue. Creio que chega por hoje. Para mim, pelo menos

- Sejamos crianças, que acha? São a matéria-prima de tudo. São ouro por polir. Se há música para pôr a tocar, deixemo-los dançar, deitar fogo a isto tudo para tirarem uma fotografia, para um quadro, para uma sala. Imagine só. Uma casa a arder, e um miúdo que tire uma fotografia. Para pendurar numa parede, numa outra casa. O preço da arte, não acha?

- Acho que ainda somos crianças, isso é que eu acho.

- Pois não somos. Nem podíamos estar mais longe. Velhos, entende? Será que me entende? Claro, os miúdos não têm isto de fumar, das mãos a cheirar a fumo, da paixão pelo copo a mais e de tudo o que vem com idade, a parte boa. Mas querem dançar, pegar nos restos, reutilizar o morto, o enterrado. O que enterrámos. Querem dançar. E sabe-se lá porquê, querem também crescer.

- Dancemos, nós.

- Pois isso que se foda. O que queremos pouco lhes importa. E muito bem. Todos artistas, quando nascemos. Todos nascemos artistas. E perdemos tudo por conselhos de amigo, conselhos de merda, não acha? O Picasso disse-o. Que todos nascemos artistas, sabe?

- Pois eu acredito que nascemos tal tábua rasa.

- O caralho, é que nascemos! Eu fui mil gente, já. E perdi-os todos, homens meus, um exército de ideias, um batalhão de ideias. Perdi-as todas, entende? Se um dia reencontrar alguma, sei de onde veio. Imagine só. Encontrar-me com o que podia ter sido, se não me tivesse perdido nisto de crescer por crescer. Passei a vida toda a querer estar aqui. Não é triste, isso? Havia mil coisas mais. Tinha de ser perfeito para não me arrepender de ter crescido. Diga-me que posso voltar atrás, voltar ao exército, ao batalhão de ideias! Medique-me, se não se importar. Fale-me de um peterpanismo que possa usar. Sabe que Picasso tinha razão? Sabe não sabe?

- Volte atrás, então! Pode-o fazer. Ir ter com o batalhão de ideias.

- O caralho, é que posso! O caralho!

1 comentário:

Isabel Campos disse...

Lembra: Can you carry my drink?, i have everything else.