A vermelho vivo, no muro da rua magrinha, alguém escreveu "Verão". Duas ruas mais abaixo e outro muro diria "Primavera", com plantas pintadas de roxo. A pequena terriola era toda ela um tapete de pedras lançado ao chão, com meninas pequenas à janela, a sorrir e a dizer adeus a quem passar. Passa uma mão cheia de rapazes de bicicleta rente aos muros.
Três meninas de vestido espreitam da varanda de flores e arranjos bonitos presos ao cabelo a cair nos ombros esqueléticos. O vestido de uma das meninas é vermelho claro, preso com um laço grande na cintura e do lado esquerdo fios pretos que lhe vão caindo da barriguinha até às pontas do vestido, onde se veêm flores e afinal são caules os fiozinhos pretos que lhe caem do umbigo. Noutro vestido, azul, da menina ao lado, uma flor pequena ao peito e pouco mais. Do outro lado a última das três meninas, com um vestidos e fita verdes. A última das três empoleira-se sobre um vaso da varanda, com os sapatos pequenos a pisar um flor bem nascida. Da varanda vê um rapaz e ele acena às três. Vira de novo a cabeça e diz "Boa tarde senhor José" para um velhote, uma varanda ao lado. Tinha vestida uma camisa muito fina, branca, abotoada duma ponta à outra, e umas calças demasiado quentes, de um castanho enfadonho. Tem uma mesinha redonda mesmo à beira, onde poisa um copo de vinho a caminho de vazio. Tem papéis amontoados que não foram mais que uma frase feita e outros muitos maus começos. Tem quase dez bolas de papel aos pés, e chuta-as a cada passo que dá à procura da garrafa de vinho.
Uma, sem querer, chuta-a e deixa-a cair pela brecha da varanda.
O menino que passava apanha-a do chão e desdobra a folha. Lê as três estrofes que a enchem, vira costas, e vai roubar uma flor ao jardim em frente ao prédio. Traz uma flor feia, que cresceu torta, e segura-a com a mão direita. Na esquerda, o papel amarrotado. O velho grita da varanda a pedir a folha, chama-lhe "pirralho" e outras coisas feias. O rapaz lê o poema todo, esticou o braço com a flor. Declamou-o à menina de vestido vermelho, com fiozinhos pretos a cair da barriga. As outras duas cuxixam e riem baixo. A menina de vermelho ouve-o de mãos a segurar o queixo vincado, atira-lhe beijinhos. As duas meninas puxam a de vermelho para dentro e o rapaz segue passeio fora. O velho casmurro às tantas ri-se. Dá um golo curto do copo e faz um avião de papel com a folha em cima da mesa, o seu último mau começo. Atirou-o varanda abaixo e depois atirou mais uns quantos. Nessa tarde, disse-se pela rua que choveram aviões de papel.
8 comentários:
Ai opá...pronto. És aquela base, a sério.
Vou-te dizer uma coisa, eu li isto e pensei em António Lobo Antunes. E não é para dizer que tens um estilo parecido com o dele, nada a ver, até porque só li algumas coisas. Mas fazes o mesmo que ele, pegas em coisas simples e normais, e pela tua visão transforma-las em coisas simples e normais mas verdadeiramente fantásticas.
O que posso dizer, o texto está mesmo bonito, e altamente, sim, penso que altamente também se aplica aqui.
Lindo! Faz-me um filho! (ups apagar a última parte)
por falar em lobo antunes, chegaste a acabar «o meu nome é legião»?
ó, era o «O Arquipélago da Insónia», não era?
hmhm, estou a ver
Isso numa terra chamada Folgosinho. Falta o som inexperiente do contrabaixo e do baixo desafinado a acompanhar. E o cheiro de um bolo de chocolate a sair do forno.
E pode ser Inverno?
Está muito bonito :)
Sempre admirei este teu talento *
Dânia
(como te percebo)
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