Roubou um copo cheio da mesa ao lado, a segurá-lo com dois dedos de cada lado, tirou os anéis todos que tinha e guardou-os no bolso. A caminho da casa de banho tropeçou em si mesma e os calcanhares magros doíam, os saltos altos, não muito, não ajudavam. Com o braço direito abriu a porta e tirou o cabelo dos olhos, a tentar ver qualquer coisa. Com o esquerdo empurrou uma miúda a choramingar baixinho. Com os dois abriu caminho até ao espelho. Fechou os olhos e passou as mãos pela cara, a esconder-se, depois pela torneira, e levou à boca. Retocou o batom e examinou cuidadosamente as olheiras negras, pesadas, vivas, em carne morta. Com o batom vermelho desenhou uma cruz no dedo do anel, no lugar do anel. Depois desenhou no espelho. Primeiro uma cara, orelhas, olhos, olheiras debaixo. Por último, um sorriso parvo, demasiado grande. Um auto-retrato apressado. Tentou imitar o desenho. O copo estava ao lado da torneira, ainda cheio. Brindou a olhar-se ao espelho. Piscou o olho direito, torceu para que o esquerdo não lhe fosse atrás, morto de sono. Tirou os sapatos, deixou-os ao lado da torneira. Descalça, pôs-se em bicos de pés, espreguiçou-se, beijou a cruz de batom vermelho no dedo, dobrou-se como a ceder a uma dança, como a agradecer a quem ia reconhecendo no espelho à frente. Voltou aos bicos de pés, empoleirou-se no lavatório, deu um beijo ao espelho, na bochecha, piscou o olho. Voltou a treinar o sorriso. Saiu-lhe bem desta vez. Voltou a pegar no batom, subiu ao lavatório, baixou-se. Escreveu a letras maiúsculas, no vidro, "Casas comigo?". Por baixo, como em pequena, uma caixinha para sim e outra para não. A caixinha sim mil vezes maior. Imitou o sorriso outra vez. Saiu perfeito. Pegou no telemóvel, desceu pela lista de números, parou. O telemóvel a apitar. Do outro lado "Estou? Que é que se passa?". "Vem à casa de banho das senhoras, rápido,
e traz uma flor na mão".
1 comentário:
Tão lindo pá, está mesmo vivo o texto, mesmo altamente epá, gostei muito.
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